Não te parece que o que te define aconteceu entre os 6 e 10 anos? A mim, parece. Por exemplo, foi aos 6 que descobri que não tinha o necessário para o papel de princesa.
Uma das “tias” do pré-primário estava distribuindo os papéis da peça de comemoração de fim de ano: A Rosa Juvenil. A Rosa seria Sheila, e ninguém questionou, porque ela era a menininha mais bonitinha e fofinha da turma. Tinha um jeito tímido e meio bobinho, mas mesmo isso não a desqualificava, ao contrário. Achei justo.
Victor com “c” seria o príncipe. Meu crush, o menininho mais bonitinho. Justíssimo.
Com minha cara e meu jeito comuns, eu nem sonhava em ser chamada pra um papel de destaque – já me via no meio do coro fazendo o papel de mato que cresceu ao redor, segurando uma folha de palmeira.
— Letícia, você vai ser a bruxa —a tia me interpelou de repente.
— Bruxa boa, né, tia — choraminguei, pois criança criada na ética da bondade e do escrúpulo.
— Letícia, não comece! — a tia se irritou.
Que surpresa! “Não comece!” Como ela sabia que eu era chata se ela nunca tinha prestado atenção em mim? Mas tinha.
Meus escrúpulos desapareceram instantaneamente com o risco de perder um dos papéis principais. Aceitei ser a bruxa má antes que a tia mudasse de ideia. Mais que aceitei, me joguei.
Adorei a túnica preta e o chapéu preto pontudo que minha mãe e minha avó se esmeraram em fazer pra minha estreia.
O tempo e as coisas que nos ensinam, porém, me fizeram esquecer que, como se diz, quem nasceu pra bruxa, nunca vai ser princesa – aqui não desqualifico nenhum dos dois papéis, ambos dão muito trabalho. Em vez de seguir minha vocação, já que tanta gente insistiu que meu talento era outro, trabalhei duro pra ser princesa e acabei sendo nem uma coisa nem outra. O que é desagradável, já que uma vocação não assumida é uma tortura.
Torturada sigo, portanto, no resgate de minha bruxa interior, boa ou má, no tempo que me restar. Veremos.
Curitiba, 10 de outubro de 2023
Leticia Lopes Ferreira
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