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Conflito Armado entre Rússia e Ucrânia e a Questão dos Refugiados: Reflexos para o Brasil


Engana-se quem acredita que o conflito Rússia x Ucrânia tenha se iniciado em 24 de fevereiro de 2022. Engana-se, igualmente, quem acredita que as consequências do conflito impactarão somente o território europeu e, se muito, o território russo. A verdade é que as mazelas de uma guerra ultrapassam seu tempo e espaço – e isso é tanto verdade que o Brasil, ciente de tal realidade, enviou 11 toneladas em alimentos, medicamentos e purificadores de água à Ucrânia, além de regulamentar a concessão de visto temporário e de autorização de residência aos ucranianos por intermédio da Portaria Interministerial MJSP/MRE 28, de março de 2022.

Para compreender essas ações e suas necessidades, é preciso, primeiramente, apresentar a realidade do conflito e de sua história.


O conflito armado no leste ucraniano iniciou-se em 2014, quando as forças governamentais ucranianas lutaram contra os separatistas, estes apoiados pela Rússia, pelo controle de parte das regiões fortemente industrializadas do país e também riquíssimas em jazidas de carvão: Donetsk e Luhansk, ambas na região de Donbas. Desde então, mais de 14.000 pessoas perderam suas vidas e um terço do território em disputa fora deixado nas mãos dos separatistas.


Entre setembro de 2014 e fevereiro de 2015, Rússia, Ucrânia, França e Alemanha firmaram intenções de acordo, formalizadas nos chamados Protocolos de Minsk, que, momentaneamente, interromperam o movimento de tropas e reduziram significativamente o combate na região. Diferentemente do que se imagina, porém, os acordos nunca foram implementados e os combates tornaram-se constantes na região, com cerca de 75.000 soldados ocupando os 420 km da área, que era densamente povoada com cerca de 6.5 milhões de habitantes. De acordo com várias estimativas, os territórios ocupados agora têm entre 45 a 70% da população anterior a 2014.


Uma significativa parcela da população ucraniana, algo entre 17 e 22%, autodeclarava-se russa no início do conflito. Devido a isso, em 2019, o governo de Vladmir Putin assinou um decreto concedendo, aos moradores da região de Donbas, a chance de obter um passaporte russo por meio de um procedimento simplificado. Até janeiro de 2020, mais de 720.00 ucranianos solicitaram o documento, tendo sido, desde então, designados como “cidadãos russos que residem em Donbas”.


Não obstante, a integração política da região com a Rússia perpetrou tentativas de extermínio da cultura ucraniana ali: tanto Donetsk quanto Luhansk aboliram o ucraniano como língua estatal em 2020, além das escolas locais retirarem a história ucraniana de seus currículos. Tornou-se também mais difícil viajar para o interior da Ucrânia através da linha de controle russa. Inicialmente, as autoridades imputaram tal dificuldade à pandemia, embora não houvesse problemas em ingressar em territórios controlados pelo governo da Rússia. Desde então, prevalece a chamada Doutrina Donbas Russa, que entende a região como uma terra russa, além de considerar os Estados criados após a dissolução da União Soviética como projetos antirrussos, o que é o caso da Ucrânia.


Por outro lado, a Ucrânia, em 2017, cortou todos os laços econômicos com as regiões que não reconheciam seu governo central. Por consequência, a Rússia tem sido o único parceiro econômico de tais territórios, auxiliando, inclusive, no dispêndio orçamentário das regiões. Com isso, as regiões separatistas tornaram-se, dia após dia, mais apartadas da realidade ucraniana, tanto economicamente quanto ideológica, política e socialmente. A invasão russa ao território ucraniano, uma vez que o governo de Volodymyr Zelensky buscou retomar o controle da região, era apenas uma questão de (pouco) tempo.


Ainda que o exposto seja suficiente para explicar a guerra que se seguiu, em 2004, quando as ex-repúblicas soviéticas da Estônia, Letônia e Lituânia aderiram à OTAN e à União Europeia, o governo russo deixou claro sua oposição a qualquer esforço de outros Estados pós-soviéticos ingressarem em ambas as organizações. A Ucrânia, contando com uma política externa independente e visando estabelecer laços mais fortes com o Ocidente, deixou transparente a sua intenção de ingresso a ambas organizações. A atitude foi vista como uma forte ameaça à segurança russa; com um exército fraco e sem aliados militares naquele momento, a Ucrânia se viu, então, vulnerável a uma invasão russa, o que de fato aconteceu ao final de fevereiro de 2022.

Ainda que exista uma complexa conjuntura histórico, política e étnica, além de fatores geopolíticos e econômicos ensejando a presente guerra, a repercussão do ataque russo e das respostas do governo de Kiev afetaram não diretamente as altas cabeças do front inimigo e, sim, a população civil. Nesse cenário, a coalizão internacional não pode ser silente ou se valer apenas da retórica.


Até o 15o dia do conflito, mais de dois milhões de pessoas já deixaram a Ucrânia – sendo que 500.000 pessoas apenas nas últimas 48 horas, segundo dados da ACNUR. É estimado, ainda, que mais de 2.000 civis já tenham morrido no conflito. Ademais, segundo dados do Google Trends, os russos têm procurado por meios de sair do país: cresceram em 100% as buscas por palavras como asilo político, emigração, voos e vistos nos últimos dias, sendo que, uma semana antes da invasão russa ao território ucraniano, 43% dos russos entre 18 e 24 anos afirmaram que gostariam de deixar o país para sempre. É clara a primeira e grande consequência do conflito: a inegável crise migratória que já assola as regiões envolvidas no conflito.


Muitos países e, inclusive, a União Europeia (UE) começaram a se preparar para essas migrações forçadas: diz-se que a Europa tem sido rápida na resposta, demonstrando a maior mobilização em receber migrantes – ucranianos, frise-se – dos últimos anos. A Polônia, que já abriga cerca de 1.5 milhão de ucranianos, instalou alojamentos temporários, hospitais e centros de recepção. A Irlanda anunciou que renunciaria a todos os requisitos de visto para ucranianos que buscarem refúgio lá, e a República Tcheca suspendeu suas proibições de entrada e as demais restrições à pandemia do COVID-19 para os refugiados que chegarem. Com relação à UE, as autoridades apoiaram a Diretiva de Proteção Temporária do bloco, uma lei até então nunca usada e que permitiria, às pessoas fugindo da Ucrânia, que entrassem nos estados da UE por até três anos sem solicitar asilo. Os cidadãos ucranianos podem entrar na UE sem visto desde 2017, o que significa que podem também solicitar asilo a qualquer estado-membro. Por sua vez, os Estados Unidos informaram que suas tropas na Polônia estarão disponíveis para ajudar na evacuação de refugiados.


E o Brasil? Enquanto o refúgio é previsto no cenário internacional desde o ano de 1951, o visto humanitário, chamado pela legislação brasileira de visto temporário para acolhida humanitária, teve sua previsão legal interna em 2017, por intermédio da Lei 13.445. O visto será concedido a fim de garantir a facilitação da permanência e residência no Brasil, desde que observadas uma das seguintes situações: grave ou iminente instabilidade institucional; conflito armado; calamidade de grande proporção; desastre ambiental; grave violação de direitos humanos ou do direito internacional humanitário. Há, ainda, regras próprias para os haitianos, para os sírios e para os afegãos. Em relação aos ucranianos, editou-se, em 03/03/2022, a Portaria Interministerial MJSP/MRE 28, que dispõe sobre a concessão do visto aos ucranianos e apátridas afetados pela guerra no país.

A portaria vigorará até 31 de agosto de 2022, permitindo que seja concedido o visto temporário pelo prazo de validade de 180 dias. O solicitante deverá apresentar, à Autoridade Consular, documento de viagem válido, formulário de solicitação preenchido, o comprovante de meio de transporte de entrada no território brasileiro e o atestado de antecedentes criminais expedido pela Ucrânia ou uma declaração, no caso de impossibilidade de sua obtenção. O prazo de residência será de dois anos.


Além do visto, o Brasil começou a receber refugiados ucranianos por intermédio da Operação Repatriação, levada a cabo pela Força Aérea Brasileira. A missão foi realizada no início de março com os objetivos de resgatar brasileiros que estavam no território em conflito, bem como de trazer ao país ucranianos que desejassem a concessão de visto humanitário aqui.

O que se observa no Brasil está em consonância ao restante da sociedade internacional. O país concretizou uma resposta rápida e relativamente eficaz para lidar com a crise migratória dos deslocados forçados da Ucrânia. Não obstante, para os russos que se opõem à guerra, ainda que sofram perseguições e severas repressões do Kremlin, não há a mesma receptividade no cenário internacional: além de não haver qualquer normativa apta a lhes receberem, cresce cotidianamente um movimento de russofobia em todo o Ocidente.


Em um conflito, os civis, independentemente do front em que se encontram, percebem-se igualmente fragilizados e com sua dignidade em cheque. Ainda que seja louvável a posição do Ocidente em relação aos migrantes ucranianos, o mesmo não pode ser dito em relação às iniciativas tomadas para proteção dos russos que, ideologicamente, estão próximos aos ucranianos. Estamos, de fato, protegendo os migrantes ou criando castas migratórias?


Dra. Danielle Annoni

Professora de Direito Internacional da UFPR


Dra. Priscila Caneparo

Professora de Direito Internacional da UNICURITIBA

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