top of page
Foto do escritorConvidados

Crítica: A Hora da Estrela

A hora da estrela (1985) acompanha a história de Macabéa (Marcélia Cartaxo), uma migrante nordestina que trabalha como datilógrafa em uma firma do subúrbio paulista e vive com suas colegas em uma pequena pensão no subúrbio da cidade de São Paulo. Paralelamente, ela conhece Olímpico de Jesus (José Dumont), um metalúrgico de grandes pretensões, que sonha se tornar vereador. Adaptação da célebre obra de Clarice Lispector, a diretora Suzana Amaral, de 53 anos, propunha uma viagem ao inconsciente da personagem, destacando seu interior e passando o meio externo para segundo plano. Ou seja, o conflito psicológico da personagem é ressaltado em meio às resoluções cotidianas. No filme, o dia a dia de Macabéa carrega, por meio de diálogos, uma reflexão acerca da natureza do ser humano e suas relações na sociedade.

Primeiro filme de ficção da diretora, a releitura de A hora da estrela para as telas de cinema foi destaque internacional. Marcélia Cartaxo ganhou prémio de melhor atriz no Festival de Berlim (Urso de Prata), em 1986, e no Festival de Brasília, em 1985. O que se vê em tela é uma adaptação admirável, um marco na história do cinema brasileiro, que marcou as carreiras de Cartaxo e de Amaral.

No contexto do Cinema Novo, com inspirações também no Neorrealismo italiano, Amaral se utiliza da câmera na mão para criar planos da cidade de São Paulo que parecem, em um primeiro momento, vazios e silenciosos. Contudo, esse uso intimista da fotografia dá espaço para a interpretação dos atores, mantendo a atenção do espectador por meio dos diálogos e da atuação sublime de Cartaxo, que, em momentos de solidão, carrega no silêncio a mesma sensação que temos ao ler a obra original. O som traz a nostalgia do rádio: em diversos momentos, o objeto cênico se transforma em trilha sonora, nos transportando para o período em que se passa a história.

Além disso, a diretora domina com maestria a montagem a favor da narrativa, enfrentando toda a complexidade de adaptação das produções literárias da autora. Em uma das cenas mais emblemáticas do filme, logo no início, a personagem olha para suas mãos sujas e malcuidadas e, em seguida, corta para ela se olhando em um espelho velho e manchado. No aspecto sonoro, o filme carrega traços do início do cinema sincronizado brasileiro, em que a gravação do som era feita por cima da película finalizada. Isso, para alguns espectadores, pode interferir na imersão da história, mas conversa muito com as estéticas e a simplicidade narrativa que a história propunha trazer.

Macabéa é descrita plenamente: sua personalidade é sem graça, “desbotada”, resumindo-se a seu gosto por cachorro-quente e Coca-Cola, parecendo muitas vezes estar alienada da realidade em que vive. Em uma das cenas, enquanto conversa com Olímpico, ela ressalta seu deslocamento social: ao ser confrontada com a frase “gente fala de gente”, responde “mas eu não acho que sou muita gente”. Para o espectador, esse contato com a personagem é ressaltado pelo modo como a direção intercala o filme entre momentos de socialização e profunda solidão. Cria-se um sentimento de estranheza, que, apesar de ser válido, promove uma reflexão a respeito de nossa necessidade de mudar de personalidade – assim como Macabéa, que se distancia psicológica e fisicamente do universo em que vive.

Apesar de tratar da realidade da mulher periférica em uma cidade grande, o aspecto social está presente. O filme se destaca principalmente pelo desamparo e dor da personagem, que não consegue compreender suas emoções, não entende a diferença entre o psicológico e o físico. Macabéa, no último ato do filme, pede a Glória uma aspirina, pensando que o remédio vai diminuir a dor do abandono e a desilusão do primeiro amor, não sabendo o que dói, querendo apenas se livrar daquele sentimento.

A revisita de A hora da estrela nos faz lembrar de todo o talento e importância dessas duas figuras femininas para a produção artística brasileira.


Julia Oliveira

Comments


bottom of page