A obra literária "Ensaio sobre a Cegueira", de José Saramago, de forma sucinta, explora uma epidemia de cegueira inexplicável que se instala sobre uma cidade não identificada, deixando a maioria de seus habitantes sem visão. Este panorama serve como metáfora para uma reflexão mais ampla sobre a sociedade e a condição humana.
A obra de Saramago pode ser interpretada como uma alegoria sobre a cegueira moral. A perda da visão reflete uma incapacidade coletiva de reconhecer e responder às necessidades alheias. À medida que a epidemia se espalha, as instituições sociais colapsam, e a ordem cede lugar ao caos.
Paralelamente, Zygmunt Bauman, um dos mais influentes sociólogos contemporâneos, aborda em suas obras as características da modernidade líquida, uma era definida pela transitoriedade das relações humanas e pela fragilidade das estruturas sociais.
Desde um primeiro momento, uma breve análise às obras através da intersecção sobre os temas abordados se mostra possível.
Ambas as obras, apesar de emergirem de diferentes campos do saber – a literatura e a sociologia –, dialogam profundamente sobre temas como desintegração social, anonimato, alienação e dilemas morais, proporcionando uma visão crítica sobre as nuances da vida pós-moderna.
Ao tempo em que Saramago expõe em sua metáfora a fragilidade das conexões e a relativização moral, Bauman, por sua vez, descreve a escalada do individualismo e a indiferença moral frente à “pasteurização” característica ao período.
Na narrativa de Saramago, a epidemia de cegueira que acomete a população surge de forma abrupta e sem explicação, retirando dos personagens não apenas a capacidade de ver, mas também a possibilidade de serem reconhecidos em sua singularidade. A crise de identidade se torna evidente à medida que desaparecem as nuances que diferenciam as pessoas – tanto atributos físicos como expressões faciais, vestimentas e comportamentos visíveis, quanto aspectos de alteridade, como a habilidade de empatizar com os outros –, levando todos a um indistinto anonimato dentro dessa coletividade.
Essa condição ressoa com as observações de Bauman, em que o anonimato é um traço marcante das grandes cidades e das relações fluidas da modernidade líquida. Em ambientes urbanos e digitais, as pessoas frequentemente interagem sem um conhecimento profundo sobre os outros, levando a uma sensação de isolamento e alienação, mesmo em meio a multidões. De maneira similar, o conhecimento superficial e as relações efêmeras desafiam nossa capacidade de formar identidades autênticas e significativas.
A combinação dessas obras, portanto, busca ilustrar as tensões e os desafios da vida contemporânea, destacando a relevância da ética em um mundo marcado por mudanças rápidas e relações efêmeras. Ao refletir sobre "Ensaio sobre a Cegueira" através das lentes de Bauman, ganha-se uma perspectiva enriquecedora sobre como as crises podem revelar tanto as falhas quanto as potencialidades do ser humano.