Dr.ª Valeria Mendes Siqueira, responsável pelo Centro de Inclusão e Apoio à Pessoa com Deficiência da OAB Paraná, nos conta os desafios da inclusão na sociedade.
Livre Instância: Quando falamos em inclusão social, é muito comum, para a grande parte das pessoas, abranger esse termo com um todo. Entende-se a necessidade de respeitar às diferenças, sejam elas culturais, sociais ou físicas. Mas ainda é nítida a pobreza de conhecimento, o pré-conceito acerca do tema e o desinteresse da população como um todo, na busca de informação, principalmente quando falamos das pessoas com alguma deficiência, seja ela física, mental ou intelectual. A Doutora, acredita que a educação formal pode ser um caminho para conscientizar e educar as novas gerações? Visto que é frequente o estudo e a luta da classe pedagógica pela inclusão?
Dr.ª Valeria : Sem dúvida nenhuma a inclusão anda de braço dado com a educação inclusiva, pois a sociedade atual tem comportamentos como: medo de auxiliar a pessoa com deficiência (PcD), falta de informação, pressuposições equivocadas, preconceitos e comportamento discriminatório, exatamente porque não conviveram desde a tenra infância com crianças PcD.
As crianças que convivem desde muito pequenas com outras crianças com deficiência enxergam nas características de seus amigos PcD a normalidade dentro da diferença de cada ser. Brincam sem preconceitos e medos e os incluem naturalmente. Assim, para essas crianças, não teremos que falar em inclusão porque a inclusão fez parte do seu processo educativo.
O ensino inclusivo, que promove a convivência de crianças sem deficiência com crianças com todos os tipos de deficiência, prepara a todos para um convívio social inclusivo.
E quando digo todos incluo também as crianças com deficiência que, em um ambiente regular, tem de se adaptar dentro de suas limitações e, portanto, aprendem sem superproteção até aonde conseguem ir observando toda sua capacidade e potencialidade e respeitando sua deficiência.
Ou seja, esse é o caminho para que a pessoa com deficiência atinja o máximo da sua potencialidade e para que a sociedade do amanhã, formada pelas nossas crianças de hoje, seja totalmente inclusiva de uma forma muito natural a ponto de que, um dia, não precisemos mais falar sobre inclusão das pessoas com deficiência na sociedade como um todo.
Livre Instância: Geralmente, acreditamos que a educação é o caminho para o desenvolvimento pessoal e até mesmo a única chance de ascensão social de um indivíduo. Também é fato que muitos não têm oportunidade de ter um ensino de qualidade. Como é o acesso da pessoa com deficiência à educação?
Dr.ª Valeria: A primeira coisa a se esclarecer é que o fato de uma criança PcD ter uma matrícula em uma escola, como exige a lei, não significa que lhe está sendo dado acesso à educação, porque o acesso à educação pressupõe que a criança tem acesso a materiais e à estrutura pessoal e física necessária para o seu aprendizado, porém, infelizmente, hoje nossas crianças PcD não contam com esse suporte necessário.
A realidade é precária, os professores não têm formação e preparo para ensinar crianças com deficiência. O número de professores que dominam a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) é ínfimo, assim como o número de professores preparados para escrever e ler em Braille e para ensinar crianças com Transtorno do Espectro Autista ou Síndrome de Down. Lembrando sempre que temos inúmeras deficiências as quais não citei e que, mesmo dentro de uma mesma deficiência, temos diferentes graus de comprometimento e de necessidade em cada uma delas.
Fora esse despreparo dos professores, as crianças PcD também não têm acesso a materiais próprios para o seu processo de aprendizagem. As escolas, na sua maior parte, não têm livros, apostilas e materiais usados em sala adaptados, máquinas braile, regletes, pulsões, softwares de voz, material em relevo, com sonoridade ou luzes, etc. para que as crianças PcD de fato consigam absorver o que está sendo ensinado em sala.
Além da falta de adaptação necessária, as crianças PcD, muitas vezes, têm que frequentar uma escola de apoio durante o contraturno, cujas aonde estas adaptações serão no máximo possível disponibilizadas, isso faz, consequentemente, com que a criança PcD acabe tendo que ocupar, pelo menos, dois turnos para conseguir acompanhar sua classe de ensino, o que é muito cansativo, porque no turno regular de ensino a criança PcD sofre um estresse pela falta do material humano e físico adaptado, já no turno onde tem acompanhamento especializado, ela revê matéria na qual já criou certa resistência, enquanto seus colegas estão praticando esportes, brincando, aprendendo idiomas, descansando, etc. Ou seja, a criança PcD enfrenta uma barreira enorme que a desmotiva e dificulta sua ascensão aos estudos.
Apesar de todas essas barreiras, nossos jovens com deficiência têm persistido e, cada vez mais, ocupam vagas nas universidades, porém, a luta continua, porque, mesmo no ambiente acadêmico, a falta de acessibilidade se perpetua.
Portanto, não que um jovem com deficiência se torne um super-herói por se graduar ou obter especializações, mas certamente é um jovem com muita vontade de vencer e de ser incluído, o que deve ser visto com todo o mérito do seu esforço.
Livre Instância: Como é a aceitação da pessoa com deficiência no mercado de trabalho, principalmente no ramo jurídico? Quais são as suas maiores dificuldades?
Dr.ª Valeria: Não existe aceitação da pessoa com deficiência no mercado de trabalho, inclusive no jurídico. O que existe é uma inserção pela lei de cotas que no último dia 24 de julho completou 30 anos e que jamais alcançou a marca insignificante de 1,5% de pessoas com deficiência trabalhando formalmente.
Só para se ter uma ideia, segundo os dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED), no ano de 2020, as pessoas com deficiência representaram, aproximadamente, 20% das demissões no Brasil mesmo tendo um decreto federal que impedia essas demissões durante o período da pandemia.
Hoje, temos apenas 0,76% das pessoas com deficiência trabalhando formalmente, sendo que 90% ou mais dessas ocupam subempregos e funções na qual o ensino médio é o máximo exigido para o cargo.
Nas funções em que a qualificação e a especialização são requisitos, tendem-se a não contratar pessoas com deficiência e o direito, infelizmente, encontra-se nessa situação de exclusão dessas pessoas.
Sabendo disso, a OAB/PR implementou o projeto de empregabilidade do advogado(a) e do estagiário (a) com deficiência em junho de 2018 através da criação do centro de inclusão e apoio à pessoa com deficiência do qual estou responsável desde então. Somente em fevereiro deste ano tivemos uma contratação de um estagiário, dispensado dentro de 45 dias, e temos outro estagiário na defensoria pública que ingressou neste mês de julho de 2021 e que está sendo acompanhado pelo centro de inclusão.
Importante salientar que os advogados PcD cadastrados no centro de inclusão à espera de uma oportunidade têm qualificação como especialização, mestrado, doutorado, fluência em outro idioma, etc., e só lhes falta a experiência que é fruto da sua exclusão.
Visando derrubar essa barreira, a OAB/PR, através da ESA, já ofertou curso de capacitação nos sistemas de processo eletrônico e pelo centro de inclusão ofertamos qualificação em um software de gestão jurídica, fora o apoio em todas as etapas para inclusão (seleção, recrutamento, inclusão, acompanhamento, etc.).
Além disso, por meio do centro de inclusão, apresentamos o projeto de empregabilidade, anexando material instrutivo e currículos a escritórios que ofertam vagas no site da OAB/PR semanalmente, mas, até o momento, não tivemos o retorno que gostaríamos.
Apesar de todas as dificuldades, temos consciência que a exclusão da pessoa com deficiência é um comportamento cultural enraizado e que esse tipo de comportamento, historicamente, muitas vezes, leva séculos ou décadas para se transformar.
Exatamente por esse motivo é que consideramos uma vitória a contratação dos nossos estagiários, porque sabemos que, pouco a pouco, com a informação constante, a insistência na oferta e na apresentação dos nossos advogados (as) cadastrados, conseguiremos derrubar essa barreira e teremos, um dia, todos atuando nas áreas jurídicas de sua escolha.
Livre Instância: Se comparado há muitos anos atrás, as pessoas com deficiência já conquistaram direitos importantes, mas é fato que há muito mais a ser feito. Na sua opinião, o que deve ser prioritário no momento em que vivemos e o que devemos planejar para os próximos anos?
Dr.ª Valeria: É fato que comparado a vinte ou trinta anos atrás as pessoas com deficiência conquistaram direitos importantíssimos que visam promover sua inclusão social.
A Constituição Federal de 1988 já tratou de direitos fundamentais básicos como o direito à igualdade formal, a não discriminação na contratação e no salário, à cotas na administração pública, à educação especial, à acessibilidade, à saúde e à assistência social, entre outros, que foram ampliados com a ratificação, com status de emenda constitucional, pelo Brasil da Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, a qual que deu origem, em 2015, à Lei Brasileira de Inclusão.
Temos inúmeros direitos positivados em todas as áreas da vida da pessoa com deficiência, porém falta tornar esses direitos efetivos.
Certamente, todos esses direitos se entrelaçam, mas alguns direitos são, na minha opinião, mais urgentes, como o direito à vida digna, à saúde, à educação, à acessibilidade e ao trabalho.
As pessoas com deficiência têm que ser respeitadas nas suas particularidades, necessitam do acesso à saúde para conquistar sua autonomia e independência física e precisam de uma educação inclusiva eficaz para conquistar a condição de se incluir no mercado de trabalho, afim de obter sua autonomia e independência econômica e financeira.
Creio que essas condições acima mencionadas sejam o mínimo necessário para que as pessoas com deficiência conquistem todo o restante dos direitos que lhes cabem.
* Este texto está seguindo algumas normas de acessibilidade digital.
Revisão textual: Jhenyffer Nareski Correia - @j.nareski
Perguntas elaboradas por Daniela Amaral
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