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Foto do escritorDaniela Amaral

Que vida você gostaria de ter?

Atualizado: 19 de abr. de 2023


Quando o rapaz que entrevistava as pessoas na rua abordou Matilda e a questionou, ela se sentiu confusa e, de certa forma, até ofendida. Como assim? Pensou ela. “Que tipo de vida eu poderia desejar que não fosse a minha?” Certa de que não havia outra resposta a ser dita. Contudo, passou a pensar incansavelmente naquela pergunta. Que vida você gostaria de ter?

No auge dos seus 30 anos, ela se considerava absolutamente feliz, era uma profissional em ascensão, espelhava-se em seu pai, a quem idolatrava, desde sempre, fazendo o possível para suprir o desejo dele, que era ter tido um filho homem.

Há alguns anos trabalhavam juntos no mesmo consultório médico, o qual havia sido fundado pelo seu bisavô. Era uma família cheia de tradições e esquisitices, essas tradições eram passadas de geração para geração como uma espécie de legado, um ciclo infinito. A história de vida daqueles homens, de quem ela tanto admirava, a influenciou na sua decisão profissional.

Casada com um homem dos sonhos, resultado da idealização de sua mãe que a ajudará escolher, fazia planos de muito em breve gerar os herdeiros que iriam continuar as tradições da sua família. Sendo assim, construía planos de ter lindos filhos com seu príncipe encantado, tornando a sua família ainda mais perfeita. Não desistiria enquanto não gerasse um varão para que seu pai se orgulhasse dela.


No entanto, sabia que algo lhe faltava em meio a sua dura rotina de trabalho, dona de casa e esposa. E, mesmo fingindo estar tudo bem, continuava sendo assombrada por aquela questão: “que tipo de vida você gostaria de ter?”

Sempre que se via sozinha em meio aos seus desatinos a interrogação voltava a lhe perturbar. Por mais que se esforçasse para que seu pensamento não se voltasse àquela dúvida e ela não invadisse novamente a sua cabeça, a mulher respondia para si: “essa é claro! Essa é a vida que quero ter”. Repetindo em voz alta e tentando se convencer. Lutando para apagar da memória aquele maldito questionamento que insistia em atormentar suas noites de sono.

Convencida de que aquela indagação perante a sua vida era um disparate, ela continuava a repetir como se fosse um mantra secreto, uma chave para o sucesso: "sim, essa é a vida que eu gostaria de ter. Essa é a vida que eu escolhi, essa é a vida perfeita para mim”.


Com o passar dos dias, e em meio a solidão em que vivia, constantemente lembrava-se da pergunta que insistia em não lhe deixar. Até que, vencida pela loucura, resolveu brincar com a realidade e atreveu-se a imaginar sua outra vida. Acreditou de que não havia problema algum flertar com a imaginação e se pôs a criar uma realidade alternativa, idealizando as possíveis escolhas que poderia ter feito. Pôs-se a avaliar tudo que fez e criou com detalhes uma outra vida. Nas suas suposições, imaginou-se uma arquiteta. As vezes uma talentosa chef de cozinha. Ou ainda uma bibliotecária, rodeada de livros.

Conforme os dias passavam, aquele exercício de inventar se transformou em uma brincadeira perigosa, na qual ela vislumbrava um novo mundo repleto de possibilidades. Finalmente encontrou naquele jogo algo que a divertia e aprendeu as delícias de viver a solitude.

Até o dia em que, assombrada, se viu diante do “e, se?”.

E, se não tivesse casado com o lindo príncipe de lindos olhos azuis e cabelo engomadinho? E, se tivesse escolhido ficar com o seu namoradinho da escola, aquele meio gordinho, de cabelo espetado, que a fazia rir? O menino que, segundo a sua mãe, parecia-se com o ogro verde atrevido dos contos de fada às avessas.


Matilda começou a viver uma vida secreta perdida em seus pensamentos. Em seus momentos de lucidez, brigava consigo, sofria e, de forma conflituosa, perguntava-se: “como assim? Que outra vida eu poderia querer viver, além dessa? Que indagação absurda”.

Crente de que tudo não se passava de um desatino, uma peça do acaso que havia sido pregada por sua imaginação. Mesmo assim, continuava dançando as possibilidades, pois para ela aquilo era algo inofensivo. Voltou a delirar, sonhar com o Ogro que não se casou. Imaginou os filhos que não gostaria de ter e que não confessava nem em pensamentos, porque aquele era o seu segredo mais vergonhoso, algo que não revelava nem para si. Sabia, no seu íntimo, de que não tinha talento e nem instinto materno. Isso a assustou de tal modo que gritou decidida: “chega! Basta! Essa brincadeira já foi longe demais”.

Decidiu acabar com tudo, não devia mais inventar loucuras para fugir da sua realidade que sempre julgara ser adequada. E numa tentativa desesperada de recuperar a lucidez, novamente pensou: “sim, essa é a vida que eu quero ter. Sim. Perfeita para mim, perfeita para todos! Completa de vazio! Cheia de tudo, menos de mim”.


No entanto, pouco tempo depois ela novamente se pôs a refletir constantemente sobre aquele questionamento infeliz, dia após dia, noite após noite. Até que, se sentiu como Alice, perseguindo o coelho, caindo em um imenso buraco que existia dentro de si, flutuando no nada, no vazio da sua existência. Tentou agarrar-se a qualquer coisa que a trouxesse de volta a sua atual realidade. Até que caiu no chão. A dor da queda fez Matilda recobrar as suas memórias mais profundas e seus sentimentos soterrados no seu peito, fazendo com que conseguisse acessar tudo o que havia trancafiado dentro de si.


Algo despertou dentro dela. E delirando, desejou realizar tudo o que tanto sonhara no seu jogo de faz de conta. Compreendeu que havia dentro do seu íntimo um anseio profundo de liberdade, sentiu-se sedenta por vida. Olhou-se no espelho e viu no que havia se tornado, uma personagem triste que criara para sobreviver aquela vida de mentira. Sentiu desprezo e asco pela pessoa que se transformara, uma imagem inventada para agradar a todos ao seu redor, menos a si própria. E, finalmente, convencida de que tudo que vivera até aquele momento era uma farsa, pensou nos prós e contras. Riu das suas escolhas. Chorou pelos anos perdidos e, por fim, exausta, caminhou até a porta de casa, abriu-a, despiu-se da figura dramática que fora um dia e partiu sem levar nada, sem dizer uma única palavra. Apenas caminhou, sem remorso, sem tristeza, sem dor. Carregando em seu coração apenas a esperança e a resposta para a dita pergunta.


Daniela Amaral


1 Comment


Aglaé Gil
Aglaé Gil
Apr 28, 2023

😍 Que personagem bem criada. Que belo conto!

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